domingo, 27 de junho de 2010

(Munch, E.)
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Às vezes o início vem apenas para selar o fim. Mas, por menor que seja uma história e, por mais que passe desapercebido, sempre existe um ponto de começo. Devo confessar que o enjôo de hoje se deve ao início do dia. Tudo começou na primeira hora da madrugada, em um lugar do sul. Chegamos no instante em que o último cliente deixava o local. Éramos oito, provavelmente. Alguns sentados nos bancos que estavam ao redor das três mesas da varanda. Outros sentados no chão da escada em frente à porta. Dentro, a luz baixa confiava ao ambiente um ar portenho, traduzido pelas fotos de tango pregadas nas paredes. Fora, a vida gargalhava sob um manto de estrelas. Um pouco de segredo. A melodia melancólica que gritava do fundo dos instrumentos musicais. Tudo junto transformando-se na poesia do momento em que não poderia haver preocupação alguma. O calor aconchegante do vermelho que, como chama ardente, impedia a passagem do ar frio d’uma noite de quase inverno. Dessa vez, fui eu quem desatou a falar. O que me impedia de pensar, o guardado, o não-admitido, o não-dito, o censurado, o que não gostaria de sentir. Ela me disse que a vida é simples, não deve ser complicada com questões sociais que, no fundo, não importam. O prestar contas é sempre com o eu. As horas passaram e a angustia se transformou n’uma quase falta de ar. Agora só nós duas. O colchão na sala. A janela aberta. Ela, deitada de lado, queria um post só dela. Fios loiros que, demoradamente, escorreram e cobriram-lhe os olhos verdes pálidos. O segredo confessado. O sono chegou.
(26.06.2010)

sábado, 26 de junho de 2010

O sujeito intumescido

(Francis Bacon)
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Decomposição do rosto. Dessubjetivação. Dessocialização. Um vazio. O olhar e o nada.
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(26.06.2010)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

(Fotografia de Henri Cartier-Bresson)
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A Liberdade não é da vontade. É da ação.
"Quando um corpo está em movimento, move-se eternamente (a menos que algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o pode extinguir totalmente num só instante, mas apenas com o tempo e gradualmente, como vemos que acontece com a água, pois, muito embora o vento deixe de soprar, as ondas continuam a rolar durante muito tempo ainda. O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do homem, quando ele vê, sonha, etc., pois após a desaparição do objeto, ou quando os olhos estão fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista, embora mais obscura do que quando a vemos. E é a isto que os latinos chamam imaginação, por causa da imagem criada pela visão, e aplicam o mesmo termo, ainda que indevidamente, a todos os outros sentidos. Mas os gregos chamam-lhe fantasia, que significa aparência, e é tão adequado a um sentido como a outro. A imaginação nada mais é portanto senão uma sensação diminuída [...]".
(Leviatã)

terça-feira, 22 de junho de 2010

(in)sensato

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Sempre me foi possível controlar o desejo, nunca o desejar. O objeto sobre o qual incide minha sensibilidade sempre fugiu ao meu controle. No fim, nada pode ser realmente controlado, talvez apenas uma tentativa de apagar, de desviar, de pensar que mesmo ante a ausência primeira, tudo reside tal e qual. Mas a vontade racional não obsta a busca, senão a atitude fim. E no fim, nunca foi possível direcionar minha sensibilidade, ela não obedece minhas ordens. Ordena-se por si própria. Busca sempre aquilo que não deveria poder, aquilo que não deveria querer, aquilo que se configura como tal ante a provável impossibilidade. Realmente, o insensato. Falta-me sensatez. Talvez o tempo a passar vai tudo levar. Como diz Leo Ferre, avec le temps, tout s’en va.
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(22.06.2010)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saramago: da justiça à democracia, passando pelos sinos

(Kush)
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Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda. Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta." Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo... Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste. Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica. E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes... Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo. Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
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(José Saramago: publicado em Porto Alegre/2003
Le Monde Diplomatique -
texto cedido por Lucas Machado)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Com pesar...

Espaço Curvo e Finito
Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças
E ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe,
Um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.
(Saramago)

Lado a lado




Duas cadeiras. Lado a lado. A mesa em frente, baixa e de maneira escura. Um copo, talvez meio cheio, talvez meio vazio. Uma taça na qual se via apenas a intensa cor do vermelho escuro que manchava o cristal. A noite estava calma, a rua vazia, sem pessoas passando, sem carro, sem barulho. Som do vento, das palavras ditas e das palavras não ditas. O céu baixo, céu das onze. Escuridão clara. De tão escuro o ambiente, o céu refletia um tom rosado que iluminava a casa. Ameaça de tormenta sem tempestade. As árvores da casa da frente pouco se mexiam; apenas balançavam alguns galhos secos que projetavam sombras nos gatos que, despreocupadamente, brincavam no jardim. Era uma noite como qualquer outra, mas o tempo parecia ter parado. Não havia mais nada, somente aquele momento. Ela desatou a falar. A cabeça inclinada para trás, os olhos semicerrados. Sobre tudo. Sobre absolutamente nada. As palavras brotavam da boca, abria e fechava sem parar. Não havia reflexão. Falava tudo o que tinha em mente, sem qualquer coerência entre as frases, sem sentido. A coerência era interna, era jogar ao ar ondas que se transformavam, mas que vinham de um estado de pureza mais profundo do ser. Gesticulava pouco, voz baixa. A calma que precede a tormenta. Sozinha, nada faz sentido, a felicidade tem que ser compartilhada, ela disse...Mas o futuro não é previsível, não pode ser controlado...Me mantive em silêncio. Escrevia.
(17.06.2010)

domingo, 13 de junho de 2010

Autopsicografia


"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.'
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E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
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E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração."
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(Fernando Pessoa, 1958)

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Metalinguagem, kantianamente imanente, um além-texto que só pode ser apreendido a partir do próprio texto. Auto-psicografia. Um para-si e um para-outro. Um dois em um: o que psicografa e o que é psicografado. Tudo converge no um, o auto.
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Um de dimensão inacessível e outro tangível. É poético, é texto. Um é fumaça, é sensibilidade, é poesia da alma e do corpo. O outro é traduzir a vontade em possibilidade, é dar corpo a linguagem.
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É simétrico. Padrão métrico. Doze versos em três quartetos de rimas alternadas. Cada estrofe como um período finito e concluso, excetuada a passagem do novo para o décimo verso. Ahhh.. invoco então o professor da sociedade dos poetas mortos.
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Que se rasgue o fato de que a estrutura sintática coincide com a métrica. De que serve uma métrica? De que serve a regularidade que se mostra sob pretensa racionalidade? Invoco o arrepio, o poético e o poemático. Invoco versos escritos, versos falados, versos cantados. Invoco o sentimento, a identificação, a dor sentida, a dor vivida, a dor sonhada, a dor querida, a dor fingida, a dor partida. Invoco a alegria, a melancolia, o êxtase de um supremo momento em que as palavras criam um novo mundo. Um mundo em si. No outro. Só existe o texto. O mundo no texto. O texto cria um mundo. O eu no texto, o texto no eu.
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E por falar em leitores, onde andam vocês? Leitores do que não é, leitores da criação. Mansamente, chegam na segunda estrofe para bagunçar a suposta convergência de idéias do poeta que unifica a criação. Leitores que frente ao texto aparentemente singularizado de potencialidades, pluralizam as possibilidades. Aí então, o leitor se torna poeta de uma nova ilusão.
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L. em busca do si, recém vinda do rancho do Neco...

sábado, 12 de junho de 2010

(Foto de S. de B., acredito que feita por N. A.)
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Solidão

não pode atacar meu coração

minha alma é indiferente

ilusão

busca sempre um outro permanente

é escravidão;

é inocente;

é perversão da própria mente.


quinta-feira, 10 de junho de 2010

Em berço esplêndido


"No Brasil, os torturadores permanecem em berço esplêndido"
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(Nair Bicalho de Sousa - Simpósio da SEMEDH - 10.06.2010)

Interlúdio

(Kush)
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As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado
Fico ao teu lado.
Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente - claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. Não fales.
Não me expliques o presente,
pois tudo é demasiado.
Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorando.
Fico ao teu lado.
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.(Cecília Meireles)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Sensibilidade

(Dalí - Geopoliticus Child Watching the Birth of the New Man, 1943)
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Para além das normalmente citadas cinco potencialidades dos sentidos humanos, a sensibilidade. A sensibilidade como próprio sentido da vida. Sensibilidade é coração, é pulsão. É racional na irracionalidade. É o dito no não dito. É olfativa, mas não se reduz ao olfato. Remonta lembranças, projeções, sonhos perdidos, sonhos reencontrados, sonhos futuros, sonhos ardidos. É o brilho do olhar que não brota da visão, senão da intensidade da vida vivida. É arrepio. Não de frio. Não de calor. Arrepio de um corpo em desejo ardente submerso em gelo. É o tudo e o nada. É o fecundo e o vazio. É audição que não se traduz em língua humana. É supra-humana. É polifonia de significações. É uma ausência de tempo. É voar sem asas e andar sem sentir o chão sob os pés. Logo se percebe que os olhos nada vêem. São apenas instrumentos a fazer brotar os sentimentos. Logo se entende que não se sente com as mãos, sente-se com o corpo inteiro. O perfume tampouco é percebido pelo olfato. É marco do infinito que se faz presente, que encanta e que transporta. O paladar não é fome, é desejo que tão logo saciado volta a emergir. Sensibilidade é emoção, é desejo, é paixão.


domingo, 6 de junho de 2010

(Arte de o maravilhoso mundo de Kush)
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Ser a mudaça que queremos ver no mundo acontecer
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Crer no querer
é insuficiente
só atos concretizam sonhos
o importante é empreender
para um ser-para-si ser
e livremente escolher
a busca na qual se irá viver
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(Ainda em Santa Maria..)

sábado, 5 de junho de 2010


(Arte de Vladmir Kush)
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Discurso de alienação
opera a castração,
imobiliza o sonho,
a imaginação.
Faz crer que nada é possível,
intransponível.
Para além da razão,
da falsa racionalização,
a sensibilidade,
ato de amor pela humanidade.
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Postando de Santa Maria....ainda..

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Rumo ao novo

(Arte de Vladmir Kush)
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Rumo ao desconhecido,
o partido posto a ser lembrado,
nunca será esquecido;
pode encontrar sentido,
só camuflado,
aí então pode até ser adorado.
Rumo ao novo,
nunca antes proposto;
resta aceitar com a clareza da candura,
a busca incerta da aventura.
Tal como em Veneza,
não na máscara se encontra a beleza.
Sem sonho,
se é enfadonho,
mas a imagem não está no personagem.
A pureza é tão somente a certeza
de ser no mundo
e guiado por paixões
empreender as devidas ações.
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Obs. Ainda em Santa Maria: EGED - Educação jurídica pela ABEDI - palestra de Jânia Saldanha mais do que inspiradora, evocando a sensibilidade humana.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Escrever, respirar, cantar, dançar...enfim, viver!

(Vladmir Kush - Daisy Games, oil on canvas)



"Já me fiz tantas vezes esta pergunta que hoje posso respondê-la com a maior facilidade.

Elas escrevem para criar um mundo no qual possam viver.

Nunca consegui viver nos mundos que me foram oferecidos: o dos meus pais, o mundo da guerra, o da política.

Tive de criar o meu, como se criasse um determinado clima, um país, uma atmosfera onde eu pudesse respirar, dominar e me recriar a cada vez que a vida me destruísse.

Esta é a razão de toda obra de arte.

Só o artista sabe que o mundo é uma criação subjetiva, que é preciso escolher, selecionar.

A obra é a concretização, a encarnação do seu mundo interior.

Ele espera impor sua visão pessoal, partilhá-la com os outros.

Se não atinge esta última finalidade, o verdadeiro artista persiste assim mesmo.

Os poucos momentos de comunhão com o mundo valem esse sofrimento, pois finalmente esse mundo foi criado para os outros como um legado, como um dom destinado a eles.

Também escrevemos para aprofundar o nosso conhecimento de vida.

Para atrair, encantar e consolar.

Escrevemos para acalentar nossos amantes.

Para degustar em dobro a vida: no momento preciso e retrospectivamente, na sua lembrança. Escrevemos, como Proust, para tornar as coisas eternas e para nos convencermos de que elas o são.

Para podermos transcender nossa vida e alcançarmos o que existe além dela.

Escrevemos para aprender a falar com os outros, para testemunhar nossa viagem ao labirinto.

Para abrir, expandir nosso mundo quando nos sentimos sufocados, oprimidos ou abandonados.

Escrevemos como os pássaros cantam, como os primitivos dançam seus rituais. Se você não respira quando escreve, não grita, não canta, então não escreva porque sua literatura será inútil.

Quando não escrevo, meu universo se reduz; sinto-me numa prisão.

Perco minha chama, minhas cores.

Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa de tempestade.

É a isto que eu chamo de respirar."


(Anaïs Nin)

No espelho


Adiv ad sojesed so moc raçnad oreuq; aditelferri, adacifirtep é megami a olhepse no.