terça-feira, 7 de setembro de 2010

A visita


O escostar o dedo fez com que a campainha do local quase vazio soasse. Ela, em frente à porta, esperava pacientemente sua abertura para poder adentrar no apartamento iluminado pela claridade matinal; em sua magreza austera de toda uma vida. Os trajes elegantes estavam sóbrios, excepcionalmente para uma segunda-feira não eram brancos. O cabelo cuidadosamente penteado. Os grandes óculos escuros cobriam seus olhos amarelados que sempre brilharam feito pedras preciosas. Quando nova, achava que tivessem lhe arrancado os secos olhos que não podiam chorar e colocado grandes safiras amarelas no lugar. Ela, filha das cachoeiras de águas límpidas, fazia brilhar o mais puro ouro que agora fora transformado em carvão pelas lentes negras. Caminhei até a porta para recebê-la com um abraço que não mais suportava a saudade. A mesma altura separada por duas gerações. Os dela, tão cheios de vida. Os meus, negros, dispensavam a sombra dos óculos para a divisão esconder, ora a melancolia, ora a alegria, o breu da noite, a claridade do dia, a fragilidade por detrás d'uma força que se deixava transparecer. As janelas abertas permitiam que os raios de sol manchassem as paredes na mistura com a fumaça acinzentada que exalava do defumador de alecrim e alfazema que ainda não havia acabado de queimar. - Não esqueça de que a água deve descer junto com água corrente. Ela me preveniu. Esse momentos me lembram do eu-infância que ia ao apartamento dela e sentia o mesmo aroma que fugia do quarto do meio para perfumar ansiosamente todo o ambiente. Lembranças de um passado tão presente na memória, de atos e fatos, de cheiros e gostos, do que se sentia e não se entendia. Não se podia precisar. É bem provável que eu não quisesse precisar, não quisesse entender algo que fugia a minha compreensão que conhecia o brinquedo que não me pertencia. E mesmo assim, invadiam-me a espinha de um respirar com o coração. Antes, o carrinho que era dele. Hoje uma rubra rosa para ela junto a mim, cuja presença eu sinto mesmo na ausência. Do estar quando supostamente não se está. De toda a vez que os ventos fazer balançar os cabelos e o roseiral de flores rubis se eleva ao ar. E agora aquela ela presente na presença, com sua sólida postura ereta que conservou para camuflar a paz que me traz e que faz reavivar todo o nunca-esquecido de fantasias reais e de realidades que, poder-se-ia dizer, mais irreais do que fantasias. Esse momentos únicos que vivo ao lado dela são tão sonhos quanto o são verdadeiros. É bem provável que ela, tal como a dos cabelos esvoaçantes, tenha essa mágica capacidade de estar quando não se está, transformando qualquer segundo, que muito bem poderia ser comum, em sensação de pertencimento. Eu lhe disse: - Nunca estive tão consciente da minha felicidade. Não poderia imaginar qualquer outro locar para estar, qualquer outro eu para ser ou corpo para habitar. Foi um futuro-presente escolhido possivelmente consciente ou inconsciente, possivelmente racionalidade, possivelmente sensibilidade. Escolhas de todos os momentos em que eu mesma escolhi esse sentimento * que traz a única felicidade que eu poderia aspirar. - Estou em paz, não te preocupes. Sou tão feliz quanto gostaria de ser.


Nenhum comentário:

Postar um comentário