domingo, 30 de maio de 2010

(pintura de Ismael Nery)



Chove chuva

de novo o novo

que vem e lava

a voz d'um povo


E o passado a ser sempre relembrado

vivido para não ser esquecido

não é dever

só para não perecer

O verde retumbava

no pano que flamejava

e o sangue que passou

com o tempo amarelou


Sob o signo da ordem se amou

vigiou

puniu tudo o que partiu

exilou

no outro

em si

as idéias

tudo o que se desejou

um novo lar ainda não encontrou





(28.05 - açores)








sexta-feira, 28 de maio de 2010

Qual o limite dos meus sonhos?

(Pintura de Rafal Olbinski)


Realidade e ilusão, tudo se mistura nos desejos do coração. Mas não se pode voar com os pés no chão. Qual o limite para sonhar?

quinta-feira, 27 de maio de 2010

EMBEBEDAI-VOS




É preciso estar-se, sempre, bêbado.

Tudo está lá, eis a única questão.

Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-vos para a terra, é preciso embebedar-vos sem tréguas.

Mas de quê?

De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa.

Mas embebedai-vos.

E se, às vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a grama verde de uma vala, na solidão morna de vosso quarto, vós vos acordastes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que passa, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão: "É hora de embebedar-vos!

Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embebedai-vos, embebedai-vos sem parar!

De vinho, de poesia ou de virtude: a escolha é vossa.


(Charles Baudelaire - Pequenos poemas em prosa)



"Prefere não responder e logo a afasta de sua mente, como se obedecesse a um reflexo de autodefesa, sem querer pensar a que extremos a levaria tal eventualidade.

Além disso, a resposta a obrigaria a fazer uma nova pergunta: 'Por acaso já me apaixonei alguma vez na vida?'.

Uma coisa é amar o rajá, e outra é ter se apaixonado por ele.

E sabe que no seu caso não houve amor à primeira vista.

Nunca conhecera essa paixão capaz de sacudir os alicerces da pessoa, essa sensação de loucura que as canções andaluzas tão bem descrevem...

É possível viver uma vida inteira sem ser triturado pelo amor, nem que seja uma vez?

Sem se deixar arrastar pelo arrebatamento?"


(Paixão Índia - Javier Moro)


segunda-feira, 24 de maio de 2010

La voie de la non-violence




Mohandas Karamchand Gandhi (Porbandar, 1869 - Delhi, 1948), né dans une famille aisée, fit ses études à Ahmadabad puis à Londres, où il devint avocat. Il exerça d'abord à Bombay, puis en Afrique du Sud, où il se fit le défenseur des Indiens contre la politique d'apartheid (1893). De retour en Inde, il mena une vigoureuse campagne anti-anglaise: il prêcha le boycott des produits importés d'Angleterre, demandant à chaque Indien de filer et tisser ses propres vêtements. Il fut plusieurs fois emprisonné pour. Fervent avocat de la doctrine de l'ahimsa (non-violence active) et de l'égalité des droits entre les hommes, il réclama la réhabilitation des intouchables. Emprisonné pendant la guerre (1942-1944), il participa néanmoins aux négociations pour l'indépendance de l'Inde (15 août 1947). It fut assassiné le 30 janvier 1948.

"Ce n'est pas tous les jours qu'on voit naître un grand maître. Plusieurs siècles peuvent s'écouler sans assister à l'avènement d'un seul. C'est sa vie qui nous le fait connaître. Car, tout d'abord, il vit, et ensuite, il dit aux autres comment it leur est possible de vivre de la même manière. Gandhi fut l'un de ces maîtres. [...] Chaque instant de sa vie a été marqué par cette quête de la vérité: Ce point de vue conduit caturellement à l'adoption de la non-violence comme le meilleur moyen de résoudre tous les problèmes d'ordre national et international. Gandhi affirmait n'avoir rien d'un visionnaire, mais il dissait être un idéaliste pratique. La non-violence n'est pas seulement l'apanage des saints et des sages mais aussi bien de tous les autres hommes. La non-violence est la loi de notre espèce, comme la violence est la loi de la brute. L'esprit somnole chez la brute qui ne connaît pour toute loi que celle de la force physique. La dignité de l'homme exige d'obéir à une loi supérieure: à la force de l'esprit. Dans l'histoire de l'humanité, Gandhi est le premier à avoir étendu le principe de la non-violence du plan individuel au plan social et politique. Il s'est mêlé de politique précisement pour connaître les possibilités de la non-violence et établis sa validité".
(S. Radharishnan - New Delhi, 15 août 1958)

domingo, 23 de maio de 2010

L'étranger - TAC, 22.05.2010, 21:00h




“Também eu me senti pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era".




Eu sou assim
Sou duas de mim
Sou a esperança de uma criança
Sou desespero
Sou nevoeiro
Sou grito e eco mudo
Sou o todo
Sou solidão
Sou chegada e sou partida
Sou felicidade inebriante
Tenho nas veias um coração pulsante
Sou melancolia que não percebe fim

sábado, 22 de maio de 2010



Uma em cada 5 mulheres de 40 anos já fez aborto

22 de maio de 2010 8h 42


AE - Agência Estado

Uma em cada cinco brasileiras de 40 anos (22%) já fez pelo menos um aborto, aponta o maior levantamento sobre o tema realizado no País. Quando consideradas mulheres de todas as idades, uma em cada sete (15%) já abortaram. Ao contrário do que se imagina, a prática não está restrita a adolescentes solteiras ou a mulheres mais velhas. Cerca de 60% das mais de 2 mil entrevistadas interromperam a gestação no centro do período reprodutivo - entre 18 e 29 anos.

"A maioria é de mulheres casadas, religiosas, com filhos e baixa escolaridade", revela a antropóloga da Universidade de Brasília Debora Diniz, autora principal do estudo. "Elas já têm a experiência da maternidade e tanta convicção de que não podem ter outro filho no momento que, mesmo correndo o risco de serem presas, interrompem a gestação", diz.

Medicamentos abortivos foram usados em metade dos casos pesquisados. É provável que para a outra metade das mulheres a interrupção da gravidez tenha ocorrido em condições precárias de saúde, aponta o estudo. "Cerca de 55% das mulheres precisou ser internada por causa de complicações. Se o aborto seguro fosse garantido, isso seria evitado", defende Debora.

"Os dados reafirmam a opinião já consolidada no Ministério da Saúde de que aborto é uma questão de saúde pública", diz Adson França, assessor especial do ministro José Gomes Temporão. "Mostra que estamos no caminho certo ao ampliar a oferta de métodos contraceptivos no Sistema Único de Saúde (SUS)."

Financiada pela Fundação Nacional de Saúde, a Pesquisa Nacional de Aborto entrevistou 2.002 mulheres entre 18 e 39 anos de todo o País. A técnica utilizada é semelhante a de pesquisas eleitorais e, como o anonimato é garantido, estima-se uma margem de erro de apenas 2%. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.




quarta-feira, 12 de maio de 2010

Espelho do não-eu


Procurei em vão, no céu, uma única estrela a brilhar. Tempo nublado. Chove. Finas gotas de lágrimas da negação infantil refletiram na luz emanada dos postes da beira-mar. Procurei qualquer outra magia que me fizesse acordar. Nada. Sem parar de pensar. A urgência em escrever para nenhuma de minhas reflexões se perder, foi adiada. Trânsito lento parecia não se movimentar. Lembrei-me que tinha uma caneta dentro da bolsa e um bloco de papel no banco ao lado. Não me permiti cometer qualquer imprudência. Nunca pude suportar a idéia de ver a vida passar como um filme, sentar-me em uma poltrona, observar, transformar-me em expectador. Urge em mim a angustiante vontade de provar tudo o que é vida, tudo o que se manifesta como beleza. A ânsia de viver intensamente todos os momentos finda por corroer-me internamente, deixando-me dividida entre o que já foi e o que será e, mais ainda, entre o ser e o nada. Seja na tristeza ou na alegria, necessito doar-me por completo nas incertezas da emoção. Mas não seria entrar em uma guerra contra o eu, autosabotar a projeção ideal de alegria, o depender da aceitação não-manifestada do outro, nesse incessante jogo de relações intersubjetivas, para enfim poder ocorrer o doar? Ou insistir-se na infundada procura por complemento ao que nunca nesse jogo simbiótico poderá tornar-se completo? Entender os sonhos, então, como utopias que, embora inalcançáveis, guiam nossas ações práticas ao que buscamos idealmente ou como uma negação da vontade-de-viver? Viver-se-ia nos e por meio dos sonhos, negando-se a viver no real, embora nunca se possa saber o real. A liberdade que sempre se faz presente no momento de escolha, mesmo quando não se vislumbra caminhos diversos? Quais caminhos? No ciclo ininterrupto da história forjada, já não mais sabia se a realidade é a que fora a desejada. O papel criado, interpretado, nunca foi internalizado. No escuro, na frente do espelho, o que via era o não-eu. Nada mais angustiante do que perder uma ilusão.

A la recherche du temps perdu


Portrait de Marcel Proust (1871-1922)
1892
Huile sur toile
Peintre Jacques-Émile Blanche

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Não somos uma geração sem chão


Ausente a ditadura militar e as ideologias contrapostas, nos dizem que nossa geração revolta-se sem causa. Imersos em uma cultura do controle, não nos enganemos. Erguemos nossa voz para nos revoltarmos contra a ausência da dignidade humana. Compreendendo a importância das normas legais de garantia dos direitos dos cidadãos e cidadãs, sejam elas nacionais ou internacionais, Herrera Flores atentou-nos para o fato de que direitos não criam, nem nunca poderão criar, direitos.
Não temos direitos pelo simples fato de termos nascido humanos. Se assim o fosse, uma criança nascida no sul do Brasil teria as mesmas condições de ter uma vida digna que uma criança nascida no nordeste do mesmo país. Se assim o fosse, o sistema capitalista neoliberal ocidental não garantiria os direitos individuais em detrimento de direitos sociais. Vivendo em meio a uma retórica quase perfeita, mal nos damos conta das falácias do discurso do direito, de que a ilusão pregada não corresponde aos fatos. Se pensarmos nos índices de analfabetismo, de mortes ocasionadas por doenças evitáveis e muitas vezes já extintas, na marginalização do oprimido, veremos que direitos não criam direitos.
Não paramos para pensar que nosso Sistema Penal apenas criminaliza a miséria e, apenas como exceção (para garantir a ilusão de neutralidade) os crimes de poder econômico. Deixamos de refletir sobre a marginalização do oprimido, do excluído, dos grupos sociais que lutam a favor de sua dignidade. Não mais pensamos na fome, na indiferença generalizada com relação ao outro, na alienação gerada por essa cultura do controle da mente e do corpo, seja da própria ação, seja do pensamento, do desejo ou da paixão. Pensamos menos ainda sobre a democracia na qual vivemos: quais escolhas fazemos? Quem escolhe nossos representantes, já que estamos todos desiludidos e desconhecemos as propostas de governo?
Usemos nossa voz para dizer: temos sim motivos para a revolta. Quebremos então o mito de Sísifo. Usemos nossa voz a favor da recuperação do político em cada cidadão e cidadã, da educação, da diferença, do multiculturalismo, do respeito, de uma sociedade plural. Principalmente, nossa revolta para a construção da dignidade humana, para que, acima de direitos já positivados, todas e todos possam ter os meios para lutar por uma vida digna, possam sonhar, construir a realidade não qual anseiam viver e criar uma sociedade solidária baseada na identificação e no amor.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Um grito ao mar


Em constante transformação de des-cobrimento para deixar guardada uma pseudo-racionalidade e tornar-me toda paixão. Para um ser completamente perdido, só há possibilidade de se encontrar quando se perde ainda mais por caminhos desconhecidos. Perder-se pela leitura mais só se reencontrar através da escrita.
Nada como um avermelhado pôr-do-sol a marcar o fim de um novo recomeço, de um tempo nem cíclico nem linear, a novamente desabrochar com o nascer do sol, ou mesmo da chuva, de um dia que ainda não começou, mas que traz consigo a esperança do por vir. Nada como observar a esperança nascer no horizonte de um mar que, por detrás da aparente imobilidade do cansaço matinal, esconde o turbilhão dos contraditórios, das alegrias e das angústias.
Nada como a primeira brisa fria de inverno cortando a face e lembrando-nos da melancólica alegria do cinza esfumaçado; ou o vento quente da primavera que inunda-nos os cabelos com o aroma foral da obviedade romântica.
Nada como saber-nos para sempre incompletos e vazios, e mesmo assim nunca desistir da felicidade, da intensidade da vida, da esperança, dos sonhos, das talvez ilusões construídas e reconstruídas. Nada como esquecer do tempo que, amigo e cruel, para uns passa depressa demais e para outros parece não andar, porque até o tempo tem seu tempo. Nada como olhar para o tudo e para o nada com os olhos da surpresa e saber-se novamente apaixonado, pelo tudo e pelo nada, enfim, pela vida.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Educação para a liberdade: vespas ou humanos?

Acreditar no acaso, que traz consigo tudo o que precisamos ouvir em um determinado momento, porque ele se perpetua ciclicamente. São possíveis coincidências diárias? Ao ler “Sobre palavras e redes” – “Conversas com quem gosta de ensinar” – Rubem Alves), percebo que tenho que ler e reler os parágrafos mais de uma vez, pois em qualquer prosseguimento da leitura, há uma interrupção de pensamentos que distanciam e aproximam minha mente do que foi lido e do que é vivenciado.
Ao contrário das vespas, ou quaisquer outros animais, para os quais o comportamento – “aprendizagem” – é instintivo para a perpetuação da espécie, o que os polpa que qualquer sofrimento e angústia, mas reduz suas vidas à chegada da morte; o caso dos animais humanos é diferente.
Se, como diz Morin, o humano apenas nasce humano, mas deve aprender sua humanidade, a genética ocupa apenas um plano de fundo no desenvolvimento da vida.
De tal forma, a humanidade só se desenvolve dentro de um espaço de consenso, em uma cultura, é ensinado, é aprendido. Ou ainda, seguindo os passos de Fernando Pessoa: “Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim”. Tal como acontece com os demais animais, “a contínua obra de nossa vida é construir a morte” (Montaigne). Todavia, como dizia Sartre, embora desde o momento do nascimento, caminha-se para a morte, nesse meio tempo há vida. O que fazer nesse meio tempo?
Uma vez que inexiste natureza humana, mas ensino-aprendizagem do conhecimento humano através da linguagem, como transformar a educação em um espaço para humanizar o humano? Ludwig Wittgenstein entendeu os limites do nosso mundo como os limites da nossa linguagem. Quando há linguagem, o objeto não mais está presente, pois se estivesse, a linguagem seria supérflua: é uma criação de representação de algo que não mais é. Uma vez que a realidade é criada pela linguagem, o que não equivale a dizer que não existe o objeto em si, mas que o humano vive o objeto para si, como utilizar a linguagem para a construção de uma nova realidade? Será possível transformar os limites do mundo humano de uma forma planetária, não visando uma igualdade cultural, que não seria desejável pela anulação da diferença na identidade; mas por um planeta realmente humano?
Rumar para uma sociedade mais justa e igualitária? Como falar em diminuição das angústias quando, igualmente, se fala em mal do século (ou do novo século)? Como diminuir vazios existenciais, além da luta contra o frio e a fome identificados por Orwell? Além disso, para minhas perguntas, não quero respostas ou universalismos de chegada (como em Herrera Flores). Quero sim, novas perguntas. Quero que os universalismos de chegada se transformem em pontos de partida. Com respostas, não saberia viver.
Considerar a educação do humano, portanto, não apenas como preenchimento temporal para a perpetuação da espécie – vida e morte –, mas como forma de libertação do humano para que, em sua “fadada” liberdade, possa viver intensamente em sua humanidade e co-construir o mundo no qual pretende viver. A educação como simples reprodução – Bourdieu –, como arquivamento mecânico de idéias e pensamentos desconexos, apenas equivaleria a transformar o humano em vespa.
Sendo metade razão (ou pseudo-racionalidade obscurecida por ilusões) e metade paixão (ou pulsão), o humano precisa de uma educação para a humanidade, para a construção de sua dignidade humana (vida digna de ser vivida), na qual se insira a reflexão e a autocrítica. Precisa de sonho, de música, de pintura, de poesia: de arrepio, de sentimento, de emoção, precisa transpor-se. Precisa de multiculturalismo, de cores, de diversidade. Como proceder?

Por um manifesto inflexivo: um mundo instituinte de pessoas e de diferentes culturas

Reiventar é uma tarefa coletiva, já dizia Paulo Freire. Os Direitos Humanos surgiram na sociedade ocidental, no marco da Guerra Fria, como resposta às reações social-filosóficas da expansão global do novo modo de produção baseado na acumulação capitalista. No contexto de descolonização e política pública interventora no mercado, formulou-se juridicamente a base mínima de direitos, previstos em textos internacionais, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. Com a queda do muro de Berlin e a paralisação das medidas interventoras estatais, passou-se, inexoravelmente, de economia de mercado à sociedade de mercado. Do Estado político bemfeitor e economia keyneisiana, desde os anos 70, às teorias neocontratuais da ordem capitalista, impedindo qualquer política de redistribuição social de renda.
No marco do neoliberalismo, novo contexto social, político e econômico, os direitos humanos não podem mais ser entendidos sob a legitimação tradicional e hegemônica que confunde os planos da realidade e da razão, sob pena de admiti-los como universais e alcançados, retórica lógica simplista: supor-se-ia os direitos como o simples direito a ter direitos. Sob a falácia de sua universalização, a única coisa que se universaliza é a miséria e o desrespeito sistemático da dignidade humana, através de um macabro processo de justificação ideológica que naturaliza o sofrimento humano e renega quase a totalidade da população mundial à indiferença e ao esquecimento. O que se faz, precisamente, é criar vítimas apagadas e invisíveis.
Não obstante a importância dos textos normativos para a garantia dos direitos humanos, construídos a partir de lutas sociais, estes não podem ser reduzidos aos textos, visto que direitos não criam direitos.
Não há nada natural, também dizia Paulo Freire, pois o mundo não “é”, ele está “sendo”. Entender os direitos humanos como algo natural, alcançado e imutável apenas implica em passividade e reprodução cíclica da violência invisível justificadora do modo de produção capitalista. O que é naturalmente humano é a capacidade de fazer e desfazer mundos, é a capacidade de se rebelar. A única coisa que pode ser universalizada é a dignidade humana.
Sob o manto de direitos humanos, o que se busca é a sua reinvenção, potencializando todas as pessoas na construção de um mundo livre, sem opressão, exploração, colonialismo ou imperialismo.
Como principal desafio do século XXI, os direitos humanos devem ser entendidos como processos de lutas pelo acesso igualitário aos bens materiais e imateriais a uma vida digna de ser vivida. Isso, porque, não obstante os textos normativos disporem que todos os seres humanos têm direitos, paradoxalmente, aumentam-se cada vez mais as desigualdades sociais e a reprodução da miséria. Luta-se, social e politicamente, porque todos e todas necessitam ter o acesso aos meios para lutar plural e diferenciadamente pela sua concepção de dignidade humana.
Por meio de uma teoria realista e crítica, rechaça-se qualquer pretensão universalista abstrata, pois somente pode existir o universalismo de chegada, de constrastes e entrecruzamentos, completamente contaminado pelo contexto no qual está inserido. Os direitos humanos são, portanto, o resultado, sempre provisório, das lutas pelo acesso igualitário e não hierarquizado por processos de divisão do fazer humano, que tem como única pretensão universalizar a vida digna de ser vivida, criando um mundo instituinte de pessoas e povos de diferentes culturas.