terça-feira, 31 de agosto de 2010

Existencialismo: isso morde?



Acusado por comunistas de incitar o imobilismo no desespero, foi concebido em um conceito - fechado - de filosofia contemplativa. Acusado por católicos: enfatizar a ignomínia humana, o sórdido, a negação da solidariedade humana em um humano que, ao viver isolado em sua subjetividade, é incapaz de se relacionar em inter-subjetividade e alcançar o cogito. Negativa dos ensinamentos de Deus e valores inscritos na realidade. Mas o que é isso, o existencialismo? Isso morde? Para responder tais críticas, Sartre escreveu: O existencialismo é um humanismo. "[...] existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade etoda ação implicam um meio e uma subjetividade humana.".

"A maioria das pessoas que utilizam este termo ficaria bastante embaraçada se tivesse de justificá-lo: hoje em dia a palavra está na moda e qualquer um afirma sem hesitação que tal músico ou tal pintor é existencialista. Um cronista de Clartés assina o Existencialista. Na verdade, esta palavra assumiu atualmente uma amplitude tal e uma tal extensão que já não significa rigorosamente nada. Está parecendo que, na ausência de uma doutrina de vanguarda análoga ao surrealismo, as pessoas, ávidas de escândalo e de agitação, estão se voltando para esta filosofia, que, aliás, não pode ajudá-la em nada nesse campo; o existencialismo, na realidade, é a doutrina menos escandalosa e a mais austera; ela destina-se exclusivamente aos técnicos e aos filósofos. Todavia, pode ser facilmente definida. O que torna as coisas complicadas é a existência de dois tipos de existencialistas: por um lado, os cristãos – entre os quais colocarei Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica – e, por outro, os ateus – entre os quais há que situar Heidegger, assim como os existencialistas franceses e eu mesmo. O que eles têm em comum é simplesmente o fato de todos considerarem que a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário partir da subjetividade. O que significa isso exatamente? [...] No século XVIII, o ateísmo dos filósofos elimina a noção de Deus, porém não suprime a idéia de que a essência precede a existência. Essa é uma idéia que encontramos com freqüência: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e mesmo em Kant. O homem possui uma natureza humana; essa natureza humana, que é o conceito humano, pode ser encontrada em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal: o homem. Em Kant, resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem da Natureza, tal como o burguês, devem encaixar-se na mesma definição, já que possuem as mesmas características básicas. Assim, mais uma vez, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na Natureza. [...] O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou da mesa. Pois queremos dizer que o homem, antes de mais nada, existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser. Não o que ele quis ser, pois entendemos vulgarmente o querer como uma decisão consciente que, para quase todos nós, é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos. Eu quero aderir a um partido, escrever um livro, casar-me, tudo isso são manifestações de uma escolha mais original, mais espontânea do que aquilo a que chamamos de vontade. Porém, se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados, e os nossos adversários se aproveitaram desse duplo sentido. Subjetivismo significa, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo [...]".

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Simone de Beauvoir: um pequeno vídeo

E por falar em Simone de Beauvoir, minha escritora preferida, posto um curto vídeo, com a tradução abaixo.

Simone de Beauvoir é um personagem mítico do século XX. Ícone do feminismo, juntamente com Jean-Paul Sartre, com o qual combatia conjuntamente: do anticolonialismo ao maoismo. Nasceu em Paris, 1908, em uma família da burguesia “sem dinheiro”. Mulher brilhante, estudou filosofia na Sorbonne, lugar onde conheceu Jean-Paul Sartre: unidos pela paixão pela escrita. Desde o início, disse Simone, eu sempre busquei ser independente, ou seja, ganhar a vida por mim mesma e por isso que fiz os “exames” de graduação para ser professora e após, ser escritora, que era algo que sempre quis desde jovem. A escrita, por conquistar os direitos das mulheres: dentre outros vinte, O segundo sexo, 1949 e Os mandaris, que em 1954 ganhou o premio Goncourt. Para sua filha adotiva, que antes foi sua amante, Simone não era apenas o símbolo do início do feminismo e dizer isso é criar um personagem que a reduz a apenas uma de suas facetas. Afinal, antes de tudo, ela era uma escritora. Simone marco uma geração de mulheres, por seu amor pela liberdade. Também avançou ao escrever sobre o envelhecimento. Em 1970, ela denunciou a condição das pessoas em idade avançada e foi a primeira a fazer isso (e esse livro tornou-se um livro de referência até no estrangeiro). Simone faleceu em 14 de abril de 1986, seis anos após Sartre. Hoje em dia ela continua a ser, sem dúvidas, a mais moderna e que viveu livremente em seu século.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fazendo Gênero: diálogo psicanalítico entre Judith Butler e Patrícia Porchat


Joel Birman (UERJ)

Márcia Ramos Arán (UERJ)

Mara Coelho de Souza Lago (UFSC)

Patrícia Porchat Pereira da Silva Knudsen (UNIP)

Coordenação: Maria Regina Lisboa (UFSC)


Infelizmente, Joel Birman (Gramáticas do erotismo: a feminilidade e as suas formas de subjetivação em psicanálise - que adoro) não pode comparecer. Contudo, a palestra de Patrícia Porchat foi absolutamente encantadora. Abaixo uma entrevista-diálogo entre Patrícia Porchat e Judith Butler.

PP: Você nunca mencionou Joyce McDougall.

JB: Sim, ela é interessante. Gosto do seu trabalho, não o conheço assim tão bem, mas gostei muito do que li. E lamento não ter me envolvido mais com ela, mas talvez ainda o faça. Acho que Françoise Dolto, também, uma parte do seu trabalho em A imagem inconsciente do corpo é ótima para pensar em como o corpo é vivenciado, como sua morfologia é dada ou como é sexuada, como ele se torna ciente ou consciente de si mesmo como um corpo sexual ou como um corpo erógeno. É um trabalho extremamente interessante, esteve em circulação por muito tempo, é parte de uma abordagem psicanalítica mais clássica na França. Há uma tradução para o inglês na revista Differences.

PP: Eu agora gostaria de lhe perguntar um conceito que me parece importante em sua obra. Trata-se do trieb (pulsão), que em inglês aparece como drive. A partir de seu trabalho entendo que até a própria pulsão poderia ser compreendida como socialmente construída. Mas também entendo que, em Undoing Gender, você diz que a pulsão é condição para uma transformação social. Então, quando você fala de pulsão, está se referindo à pulsão freudiana, à pulsão lacaniana, à pulsão deleuziana?

JB: Tudo o que sei é o seguinte: não tenho uma formulação explícita do tipo "Esta é a minha teoria da pulsão". Mas posso dizer algumas coisas a respeito. O ensaio de Freud A pulsão e suas vicissitudes (Trieb und ihre Schicksale) foi muito importante para mim desde que eu tinha 22 anos. E penso que ali ele introduz a ideia da pulsão como conceito-limite, existindo no limiar entre corpo e ideia ("soma" e ideia). E julgo isso extremamente interessante. A pulsão nunca é plenamente capturada pelas ideias, nem tampouco é plenamente redutível a um corpo biológico, mas existe no ponto de sobreposição entre eles, e Freud chega a dizer que a pulsão é parte dessa linguagem figurativa, é parte da poesia dele. Eu me interesso pelo que Deleuze faz com as pulsões em Vênus das peles e em seus primeiros trabalhos sobre Sacher-Masoch. Acho extremamente interessante. A ideia de pulsion, em francês, é provavelmente um pouco diferente, mas ali penso em pulsões como estando a serviço de um perpétuo deslocamento. Mas acho que talvez a pessoa mais importante para mim no tocante a pulsões seja Laplanche e a discussão contida em Vida e morte na Psicanálise. Acho que ele tem uma tese brilhante, que é a de que não há nenhuma teleologia natural para uma pulsão e de que as pessoas que entendem pulsão como um impulso para a reprodução sexual cometem um erro. Ele diz que as pulsões sexuais não têm nenhum telos inerente, nenhum fim ou meta necessários. Assim como você não pode dizer que uma pulsão sirva à função social de reprodução, porque uma pulsão está sempre se desviando do objetivo social para o qual é direcionada. Portanto, não se pode regular efetivamente as pulsões, porque elas sempre vão escapar, ou adotar outro objeto que não o previsto. E para mim isso é ótimo, porque Laplanche realmente defende o argumento de que a sexualidade não está vinculada à reprodução da espécie, e isso é crucial, quero dizer, ela pode ser vinculada, ela pode ser levada a seguir nessa direção, mas isso não é inerente à sexualidade em si. Portanto, tomo isso como um ponto importante.

PP: Considerando a ideia de ser humano, você acha possível que, a partir da psicanálise, seja possível conceber alguma ideia universal de ser humano?

JB: Antes de tudo, não sei se existe algo universalmente verdadeiro sobre todos os humanos. Eu me preocupo com as normas que governam a questão de quem será considerado humano e quem não, mas não acho que exista um humano fora das normas. Penso que algo acontece quando as normas se rompem, ou quando se resiste às normas, ou quando as normas produzem um campo de assim chamados seres humanos fora das normas. E isso é interessante para mim porque há um modo pelo qual a categoria do humano ao mesmo tempo permite o reconhecimento de certos humanos e produz uma impossibilidade para outros. E a esses outros nós chamamos de humanos? De que os chamamos? É uma questão em aberto. Então penso que o humano sempre produz o espectro da mente e é para isso que estou olhando. Não acho que exista uma forma humana singular, não acho que exista uma capacidade humana singular, mas o que eu acho sim, provavelmente na base do meu trabalho há essa suposição, é que os seres humanos, se as condições sociais forem solidárias - e esse é um requisito importante -, se as condições sociais forem solidárias, os seres humanos, como os outros animais, buscam persistir em seu próprio ser. Essa é uma formulação de Spinoza, na Ética. E isso é interessante na medida em que em Spinoza e em Deleuze o indivíduo persiste em seu próprio ser apenas em relação aos outros, e apenas na medida em que as relações com os outros permitem uma grande afetividade ou uma maior expressividade desse desejo de viver. E é por isso que as condições sociais precisam ser propiciadoras. Não é uma capacidade interna, é uma capacidade que vem a ser vivida e exercida nas relações sociais. Então para mim não é uma parte monádica da minha existência, é algo que só se torna possível no contexto de um conjunto de relações. Não posso persistir em meu próprio ser sem ser parte de um mundo social que torna isso possível e em relação com outros, que, em certo sentido, precisam solicitar ou apoiar meu desejo de viver.

PP: Então você tem que ser reconhecido por esse outro.

JB: Sim, o reconhecimento é uma faca de dois gumes, ele pode facilitar o desejo e pode também matar o desejo. É um risco.

PP: Quando você fala de reconhecimento, qual é a diferença que se pode estabelecer em relação à ideia de inteligibilidade que aparece em Problemas de gênero?

JB: Quando falamos sobre o campo da inteligibilidade de gênero, estávamos falando sobre instituições, categorias e linguagens existentes que podem fazer com que o gênero tenha sentido. O reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade. Mas o reconhecimento também pode ser o lugar onde os campos existentes de inteligibilidade são transformados. Assim, se perguntarmos como nos deslocamos de um campo de inteligibilidade a outro, quero dizer que é possível pedir para ser reconhecido de uma maneira que, pelo menos inicialmente, é ininteligível: as pessoas dizem que não posso fazer isso, "não sei o que você está dizendo, não faz sentido, eu recuso". Mas é marcar posição no campo da inteligibilidade, revisá-lo e expandi-lo, de modo que uma nova forma de reconhecimento seja possível. Ou o indivíduo pode dizer: "não quero ser reconhecido por meio de nenhum dos termos que você tem", e nesse ponto aquele campo de inteligibilidade é recusado e uma distância crítica se estabelece. Invocamos campos de inteligibilidade quando reconhecemos outros, mas também podemos retrabalhá-los ou resistir a eles no curso de novas práticas de reconhecimento.


Leia a entrevista completa em:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2010000100009&script=sci_arttext


sábado, 21 de agosto de 2010

Pensamento desconexos: a metade da laranja?



O pequeno estalo da cômoda ao lado da cama me despertou de um silêncio que já era ensurdecedor. O final de mais um dia se anunciava pelas luzes dos apartamentos vizinhos que aos poucos começavam a se ascender. O céu, sem nuvens e sem estrelas, transformado em uma paleta de pintura cuja mistura das cores viajava entre o mais brilhante lilás e o azul cobalto. Gradativamente, cada vez mais profundo. É bem provável que o artinha tenha deixado pingar um gota de tinta preta e energicamente deslizado o pincel, fazendo sumir os variados tons que se sobrepunham. A persiana da janela aberta balançava levemente, deixando transparecer centímetros que permitiam a visão da cidade que, vista de cima, parecia feita de brinquedo, tal como se tivesse sido esculpida em massinha de modelar ou montada em lego colorido. Ela ainda dormia. Os olhos semicerrados e a respiração baixa não denunciavam a noite mal dormida. Estava agora e enfim, em paz, simplesmente afastada de um mundo ao qual, por alguns instantes, não mais pertencia. Levantei-me. Um copo d'água. Um xícara de café borbulhante. O relógio da parede transportado diretamente do imaginário de Dalí. O jantar havia sido marcado somente por volta das oito horas, permitindo-me alguns vários minutos de leitura. Afinal, em um sábado, o oito horas torna-se nove horas e ainda mais uma provável meia hora de atraso. Sentei-me em frente à janela para poder observar o que ela permitia vislumbrar do interior. E nesse momento, somente se mostrava o constante questionamento sobre o vazio existencial que perpassa a vida em suas múltiplas formas. Brotou novamente como uma flor que, regada dia a dia em meio ao árido e vasto deserto, rompeu o solo arenoso. A completude e a incompletude. As projeções, os sentimentos, o desejo, os afetos e desafetos. A perda de si, mesmo que por um instante. Crescemos e fomos ensinados que para sermos felizes precisamos encontrar o outro complemento de nossa incompletude. Cara metade. Alma gêmea. Metade da laranja. Tampa da panela. Bota velha? Seria mais ou menos como uma fórmula matemática: 1/2 + 1/2 = 1, ou seja, duas metades formam o todo inteiro, que pensa igual, sente igual. E assim, no amor, esqueceram que ensinar que o nome disso é anulação. Mas afinal (e principalmente), para a geração disney, qual a princesa encantada que não encontra seu príncipe, preferentemente montado em um cavalo branco ou transmodernamente pilotando uma ferrari vermelha? E assim, passa-se grande parte da vida à procura de algo que não se sabe bem o que é. Sentimo-nos apenas metade. Falta. Falta o complemento. E eu que sempre havia me afirmado que esqueceram de nos contar que já somos completos e que um possível, mas nunca provável, outro outro, viria apenas como um outro sensível em uma conexão intersubjetiva de desejo e energia, mudei. Isso não significa que agora entendo-me metade. Não somos completos, mas inteiros. Somos um e não metade. Mas não somos completos e o vazio de um coração comprimido em migalha é comprovação. É esse maldito vazio existencial. Essa falta de sabe-se lá o que. Se não fosse essa incompletude, jamais teríamos pulsão de morte, mas também não haveria pulsão de vida. A negatividade do caótico da incompletude enquanto falta e geradora de pulsão de morte deve ser redimensionada a uma pulsão de vida. Uma busca de criatividade enquanto criação de vida, em contante re-des-cobrimento do ser, tran-forma-(a)ção, de transgressão do instituído, de busca de novos saberes e novas sensações, que permitam a manutenção e perpetuação da vida em constante sensibilidade. O alarme do despertador lembrou-me da necessidade de partir. Deixei a caneta em cima da mesa. A bota velha. Assunto para uma próxima postagem.


(21.08.2010)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Anaïs Nin: que mulher é essa? (1/3 por Deena Metzger)

Anaïs Nin, uma das minhas escritoras preferidas, por Deena Metzger. Livros publicados: A casa do incesto, Delta de Vênus, Em busca do homem sensível, Henry & June, Incesto, Passarinhos, Pequenos Pássaros, Uma espiã na casa do amor. Em virtude de que a tradução integral do vídeo foi por demais longa, decidi por bem excluir algumas partes que considerei repetições. Tradução abaixo (espero que sem erros de compreensão).

É estranho quando uma mulher passa a vida tornando pública a sua vida privada. E nós começamos a nos questionar quem é essa mulher e é curioso para mim ouvir tais reflexões. É claro, tudo o que falaram é familiar e algumas coisas eu mesma pretendo dizer, para enfatizar bem. Mas isso não é, contudo, a mulher que conheci. E, ao mesmo tempo, é. Porque mesmo quando você torna sua vida pública, embaixo disso, há uma outra vida que não foi “performance”. A importância é chegar à vida “escondida”, de onde a riqueza do seu trabalho emerge. E no drama, que ela era parceira de tempo integral em narrar publicamente, nós perdemos a mulher que ela foi, nós ficamos distraídos pela sua beleza, pelo seu teatro, pelo seu drama ou pela sua coragem. E então esquecemos que estamos na presença de uma mulher que viveu por meio de seu trabalho e esquecemos que estamos na presença de uma mulher que decidiu ter sua própria vida. E esquecemos que havia um tempo em que isso não acontecia, quando mulheres não poderiam ter suas próprias vidas. Ela percebeu que ela estava sendo esmagada entre o selvagem mundo masculino e o profundo entendimento que ela tinha de que o feminino poderia trazer um presente ao nosso tempo. Eu não sabia que iria dizer isso, mas me parece essencial, mais essencial do que as histórias que iria contar.

O que significou, ao tempo em que ela viver, trazer o conhecimento dos sonhos ao mundo. É algo que nós dividimos profundamente e reflito agora aonde coloquei isso em minha própria vida, porque estou muito envolvida em contar os sonhos, mas em contar os sonhos à moda antiga, do modo tradicional. Mas me pergunto se eu também poderia ser tão sensitiva quanto aos significados dos sonhos se não tivesse passado tantas horas com Anais, falado de sonhos, seus significados, suas possibilidades e a ideia de que algo fala em nós de outro lugar – ela trouxe essa ideia e colocou no diário, na articulação da vida de cada um, o quão importante é, além da intimidade, da pessoalidade (vida privada, o eu). E talvez ela teria que ser mesmo essa beleza selvagem para que todos lhe dessem atenção.

Mais do que qualquer outra coisa que quero que vocês levem a sério é entender que ela era uma mulher brilhante, com um ótimo intelecto, e que todas as festas e os encontros aconteceram em virtude de que ela reconhecia inteligência e beleza e queria se conectar a isso. E queria financiar. Ela era devota a isso. Eu a conheci em 1964, quando fui convidada a ir a casa de um amigo músico que toda a sexta-feira ou algo do gênero tocava em quarteto. Uma noite, quando estive lá, tinha uma bela mulher sentada no canto, escrevendo. Em 1964 eu tinha 28 anos. Ela tinha provavelmente 16. Eu não sabia quem ela era. (E ela começou a ler) “Quando ela costurava botões para ele, ela costurava não somente botões, mas as ideias desconexas dele, das invenções dele, dos sonhos não finalizados dele, […] ela costurava e remendava o que ele desconhecia de conexão e reparo [...]”. Era uma mulher maravilhosa que não conseguia que seus textos fossem publicados. Eu era uma jovem escritora e nunca antes havia visto refletir o mundo interior na literatura contemporânea.

(Continuou a ler o livro) “[...] e a primeira vez que ele olhou para ela, vestida de vermelho e prata, ele sentiu que tudo iria queimar”.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O andar no terceiro andar

O silêncio calmo do pós-almoço foi quebrado pelo tilintar dos saltos agulha dos sapatos negros de camurça que, um a um, tocavam o gélido piso claro do terceiro andar e faziam eclodir um barulho metálico, téc téc téc, criando uma melodia harmônica a quem observava. O relógio se considerava senhor do tempo, marcando poucos minutos para soar as badaladas das três horas e a recusa na demora em se mover apenas se perdia ante a grandeza do céu azul que mais se assemelhava a um oceano infinito e majestático. Os passos, cada vez mais velozes, tornavam a melodia em valsa e tentavam deixar o tempo para traz. Não. O relógio transformado em tartaruga a nadar no oceano celeste. E ela poderia simplesmente adiantar ou atrasar os ponteiros. E o tempo, esse algo de consolo humano, continuaria talvez igual. Um pouco mais. Um pouco menos. Talvez um pouco mais para a direita, se uma onda surgisse junto às nuvens. Mas ela apenas continuou a caminhar-dançando com rapidez. Chegou ao final do corredor e procurou qualquer lugar que lhe permitisse deixar a bolsa, livrando-na do peso que machucava os delicados braços translúcidos encobertos por um grosso casaco. A bolsa ficou em qualquer lugar. Um lugar nenhum. Talvez fechada. Talvez aberta, deixando à mostra todo o conteúdo de sua personalidade. Uma desordem de objetos pessoais que, para ela, nada tinham de bagunça. Ela não sabia o que era ordem outra para além de sua própria des-ordem na qual vivia. Nada fazia sentido algum e, por isso mesmo, fazia mais sentido do que qualquer outra coisa, todo o sentido do mundo. E nenhum desses pensamentos cantou em sua cabeça. O passarinho ainda estava no ninho. Ainda não havia aprendido a voar. Seu foco não foi quebrado. Ela sofria. Não transparecia. Apenas andava. Não se importava. Caminhou até a ponte-varanda para encostar-se, sem medo de desabar, no parapeito. Era o encosto necessário para alcançar o cigarro mentolado, guardado no bolso direito. A fumaça vaporosa entrava em seu corpo frio demoradamente, quase imperceptível a quem observava, dada a vermelhidão que coloria suas bochechas, conferindo um ar de felicidade inebriante. A fumaça mentolada brincava dentro de sua boca que mais parecia esconder uma criança chupando um pirulito e deixando sua língua suavemente doce. Escondia os grandes olhos tristes marcados por kohl preto. O sol encharcava os galhos secos outonais da árvore plantada a frente. Algumas folhas verdes que fingiam ser esmeradas piscando. Outras amarelas, quase caindo com o vento que soprava e mexia também em seus longos cabelos. O passarinho aprendeu a voar, talvez. Voavam os cabelos em seus ombros, rosto, escondiam seus olhos. E ela sofria em meio a alegria. E talvez ela pudesse ser eu. Ou eu ser ela. Ou talvez um eu-ela cujos olhos absorviam a luz solar e tornavam-se espelhos refletores do eu, ou do ela.

A culpa é do corpo


"Quando Descartes montou sua metafísica, distinguiu o que chamou de corpóreo, o que ocupa espaço, do que chamou de pensamento, o que não ocupa espaço. Instituiu o que os historiadores da filosofia chamam de “dualidade cartesiana” de corpo e mente. Uma das noções metafísicas de substância, vinda de Aristóteles, era a de “sujeito de predicados”. Os filósofo modernos uniram isso: se a substância é sujeito de predicados e uma das substâncias é o pensamento, lhes pareceu mais ou menos correto dizer que o sujeito é o pensamento. Daí para dizer que a mente e o sujeito são uma e mesma coisa, bastava menos que um passo. Foi assim que a noção de identidade individual se fez. O sujeito filosófico ou, em termos sócio-políticos, o indivíduo, passou a ser caracterizado pelos seus pensamentos – o que se expressa na sua linguagem e atos.

Essa idéia de identidade do indivíduo prevaleceu durante toda a modernidade. Tal barco só fez água no final do século XIX. Foi a partir do início do século XX, por uma série de situações, realmente a noção de identidade começou a mudar. Ou melhor, passou a deslizar. Até então, o que parecia mais perene e, assim, semelhante ao que seria próprio de uma identidade, era o pensamento. Mas, sabemos bem, o homem do século XX abriu caminho para algo novo, ou seja: a mudança de pensamento. Alterar crenças, valores e projetos em um mundo em contínua transformação rápida passou a ser uma necessidade e, assim, logo a alteração moral e cognitiva deixou de ser um pecado para ser uma virtude. O que então garantiria a identidade? A segunda parte do que chamamos de eu assumiu o posto: o corpo. O século XX é o século do corpo. [...]"

(Por Paulo Ghiraldelli Jr.)

Leia mais: http://ghiraldelli.wordpress.com/2010/02/10/a-culpa-e-do-corpo/#more-2100

domingo, 15 de agosto de 2010

Gavetas do passado



Depois de postar parte do livro do Cortázar, me senti atraída a relembrar mais sensações do passado. A agenda que descrevi. Não só encontrei um dos desenhos que fiz (dos preferidos - 1999), como um dos mais incríveis presentes que recebi, embora para preservar a identidade e anonimato, apenas assinarei com as iniciais). Não conservei para que pudesse recordar, tampouco com medo de esquecer. Existem coisas que ficam gravadas na memória, histórias que fazem com que venhamos a ser o que somos.

"Para Leila

Leia, Leila, aquele que para sempre será teu; leia-me.
Pois para ti são esses versos
que este desgraçado escreveu
amando nesses dias perversos.
Escute, Leila, aquele que jamais te esqueceu; escute-me:

És a minha primeira, minha última, minha única
esperança de um dia sonhar em conseguir viver,
e livrar-me dos grilhões presos à essa vida cínica,
que se faz de amiga, mas no fim apenas faz sofrer.

Ilumine, Leila, aquele que por ti quase morreu; ilumine-me.
Sabes que és a mais linda luz
que no meu horizonte acendeu,
mas assim longe, és a minha cruz.
Abrace, Leila, aquele que distante de ti sofreu; abrace-me:

Para que então as nossas sombras possam se unir,
e assim dividiremos para sempre a nossa solidão.
Jamais esquecerei o que pensei de ti ao partir:
"...serás a minha dor, minha Hebe, minha maldição..."

Encontre, Leila, aquele que em ti se perdeu; encontre-me.
Sou para ti como um mendigo
que clama por um beijo teu,
por isso que eternamente digo:
Salve, Leila, aquele que por ti se corrompeu; salve-me."

(R.M.K. maio/2000)


sábado, 14 de agosto de 2010

MORENA DOS AMORES

OS ESPELHOS SÃO FELIZES
MORENA EXIBE O ROSTO CLARO
ABRAÇO NO URSO DE PELÚCIA
UM HOMEM PEDE AMPARO
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ELEGANTE MULHER
SORRISO DOS MAIS ENCANTADORES
POSTURA SEMPRE RETA
MORENA DOS AMORES
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MÃOS MEIGAS
ANÉIS À ENFEITAR
INTELIGÊNCIA COMO QUALIDADE
PARA O HOMEM RESTA AMAR
.
(JORGE DA ROSA)
.
.
Gostaria de agradeçer as belíssimas rimas ao Jorge da Rosa, a quem tive o prazer de conhecer pessoalmente ontem, na palestra do lançamento do livro do meu orientador, Professor Horácio Wanderlei, em coautoria com o meu querido amigo Eduardo de Avelar Lamy.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Impressionismo da (est)ética da vida




Uma profunda despreocupação com o realismo. Não há mais nada real para além da pintura, beyond paradise. Cores, luz, luz, luz. Iluminação. Movimento. Claridade que não ofusca. Um momento, um segundo. E se não foi naquele momento, tudo mudou, a luz, as cores. O sentido. Já nunca mais será idêntico. E as cores, na pintura, dissociadas e puras. A imagem pertence ao observador: combina, imagina, cria a impressão. Sua própria sensação da estética. E eu preciso de criação. Grito urgentemente por ilusão. Sem ela, o que resta da vida? Nada.

Pintura de Claude Monet: Le printemps à travers les branches (1878). Huile sur toile (52x63 cm) acervo do Musée Marmottan.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Cortázar e o eu: do sentimento de não estar totalmente (só)


Incrível como podemos nos encontrar por inteiro nos livros. Por inteiro. Inteiramente. Nas descrições, nas interpretações, nas valorações. Nos livros de Cortázar esse sentimento de não estar tão só, como a tia excêntrica, é mágico, absoluto e instantâneo. Do sentimento de não estar totalmente, porque quando se escreve, já foi, já não mais está. Quem vai, não foi. Quem escreve, foi. E eu, nas linhas e entrelinhas, ao menos aos meus olhos. Mas quando foi escrito, a identificação pertence ao ar. As palavras mudam, transformam, se reduzem e aumentam, enfim, acolhem. And all I loved, I loved alone, disse Poe, o preferido (ao lado de Baudelaire) de uma enfant terrible. Isso me faz lembrar do primeiro caderno de anotação de pensamentos, que ganhei aos treze anos, talvez como uma tentativa de estabilizar a gangorra.

O couro negro escondia as folhas que se dividiam entre linhas escritas, pensadas, croquis e desenhos. No verso, uma imagem do Roberto Smith, com o rosto maquiado das cores do arco-íris. E a música Blood flowers, que encantava-me. Na segunda folha, o início do conto Berenice (Histórias Extraordinárias – Poe) - “O infortúnio é múltiplo. A felicidade, sobre a terra, multiforme. Dominando como o arco-íris o amplo horizonte, seus matizes são tão variados como os desse arco e, também, nítidos, embora intimamente unidos entre si […] Ou a lembrança da felicidade passada é a angustia de hoje, ou as agonias que são e tem a sua origem nos êxtases que poderiam ter sido [...]”. Lembranças, momentos. E tudo volta, pertence a mente e aparece sem ser chamado.

Na primeira página, minha preferida, “All I loved, I loved alone”. E a gente escreve. Escreve porque só pode escrever. Porque já foi, não é mais. Não está por inteiro. É metade. Escrever é uma necessidade. Julio, Julio, em quinze minutos acordou um corpo que flutuava, encheu de chamas um coração que estava apagado, apático, sozinho.

Os minutos mais incríveis e mágicos da minha tarde. Sonhos, lembranças e expectativas, tudo misturado, tudo entrou sem pedir licença, apareceu. Por alguns minutos, meus olhos tornaram-se brancos, só via por dentro. Sentia. E Julio contou em meus ouvidos, como num sussurro doce, você não está sozinha:


“Sempre serei criança para muitas coisas, mas dessas crianças que trazem em si o adulto desde o princípio, de maneira que quando monstrinho vira realmente adulto acontece que este por sua vez traz em si a criança, e nel mezzo del camin se dá uma coexistência poucas vezes pacífica de ao menos das aberturas para o mundo.

Isto pode ser entendido metaforicamete, mas de qualquer modo indica um temperamento que não renunciou à visão pueril como preço da visão adulta, e essa justaposição que caracteriza o poeta e talvez o criminoso e também o cronópio e o humorista (questão de dosagens diferentes, de acentuação paroxítona ou proparoxítona, de escolhas: agora eu jogo, agora eu mato) se manifesta no sentimento de não estar totalmente em qualquer das estruturas, das teias que a vida constrói e onde somos ao mesmo tempo aranha e mosca.

Muito do que escrevi se classifica sob o signo da excentricidade, porque nunca admiti uma clara diferença entre viver e escrever; se ao viver consigo disfarçar uma participação parcial nas minhas circunstâncias, não posso porém negá-la no que escrevo porque escrevo precisamente por não estar ou por só estar pela metade. Escrevo por incapacidade, por deslocação; e como escrevo num interstício, estou sempre propondo que outros procurem os seus e por eles olhem o jardim onde as árvores têm frutos que são, naturalmente, pedras preciosas. O monstrinho continua firme. Esta espécie de constante lúdica explica, senão justifica, muito do que escrevi ou vivi. […] Não tenho a menor vontade de argumentar a posteriori que, ao longo dessa dialética mágica, um homem-criança está lutando para arrematar o jogo da sua vida: que sim, que não, que assim está. Pois será que um jogo, olhando bem, não é um processo que parte de uma descolocação para chegar a uma colocação, a uma situação – gol, xeque-mate, cabra-cega? Não será uma cerimônia que se encaminha para a fixação final que a coroa?

O homem do nosso tempo acredita facilmente que sua informação filosófica e histórica o salva do realismo ingênuo. Em conferências universitárias e em conversas de bar ele chega a admitir que a realidade não é o que parece e está sempre disposto a reconhecer que seus sentidos o enganam e que sua inteligência lhe fabrica uma visão tolerável porém incompleta do mundo. Cada vez que pensa metafisicamente se sente “mais triste e mais sábio”, porém sua admissão é momentânea e excepcional, ao passo que o contínuo da vida o instala por inteiro na aparência, concretizando-a em torno dele e vestindo-a de definições, funções e valores. Esse homem é um ingênuo realista mais do que um realista ingênuo. Basta observar seu comportamento diante do excepcional, do insólito: u o reduz a fenômeno estético ou poético (“era uma coisa realmente surrealista, juro”) ou desiste logo de indagar na entrevisão proporcionada por um sonho, um ato falho, uma associação verbal ou causal fora do comum, uma coincidência perturbadora, qualquer das fraturas instantâneas do contínuo. Se perguntarem, dirá que não acredita por inteiro na realidade cotidiana e que só a aceita pragmaticamente. Mas acredita sim, e como. Só acredita nela. Seu sentido da vida se parece com o mecanismo do seu olhar. Às vezes, ele tem uma efêmera consciência de que a cada tantos segundos as pálpebras interrompem a visão que sua consciência decidiu entender como permanente e contínua; mas quase de imediato as piscadas voltam a ser inconscientes, o livro ou a maça se fixam em sua obstinada aparência. Há uma espécie de acordo de cavalheiros entre a circunstância e os circunstanciados: você não me tira dos meus hábitos e eu não fico te cavucando com um palito. Mas agora acontece que o homem-criança não é um cavalheiro e sim um cronópio que não entende bem o sistema de linhas de fuga graças às quais se cria uma perspectiva satisfatória dessa circunstância, ou então, como acontece nas collages mal resolvidas, sente-se numa escala diferente em relação à escala da circunstância, uma formiga que não cabe num palácio ou um número quatro no qual só cabem três ou cinco unidades.

Comigo isso acontece palpavelmente, às vezes sou maior do que o cavalo que monto e noutros dias caio num dos meus sapatos e leva uma tremenda pancada, sem falar no trabalho para sair, nas escadas fabricadas nó a nó com os cadarços e a terrível descoberta, já na beirada, de que além guardava o sapato num armário e que eu estava pior que Edmond Dantés no castelo de if porque nos armários da minha cada nem seque há um abade à mão.

E gosto disso, e sou terrivelmente feliz no meu inferno, e escrevo. Vivo e escrevo ameaçado por essa lateralidade, essa paralaxe verdadeira, esse estar sempre um pouco mais à esquerda ou mais ao fundo do lugar onde deveria estar para que tudo encaixasse satisfatoriamente em mais um dia de vida sem conflitos. Desde pequeno assumi com o dentes apertados essa condição que me afastava dos meus amigos e ao mesmo tempo os atraía para o estranho, o diferente, para quele que botava o dedo no ventilador. Eu não estava destituído de felicidade; a única condição era coincidir às vezes (o colega, o tio excêntrico, a velha maluca) com outro que também não coubesse direito nos próprios documentos, e evidentemente não era fácil; mas logo descobri os gatos, nos quais podia imaginar minha própria condição, e os livros, onde a encontrava por inteiro. Naquele tempo eu poderia dizer para mim mesmo os versos talvez apócrifos de Poe:


From childhood's hour I have not been
As others were; I have not seen
As others saw; I could not bring
My passions from a common spring.
From the same source I have not taken
My sorrow; I could not awaken
My heart to joy at the same tone;
And all I loved, I loved alone.
Then- in my childhood, in the dawn
Of a most stormy life- was drawn
From every depth of good and ill
The mystery which binds me still:
From the torrent, or the fountain,
From the red cliff of the mountain,
From the sun that round me rolled
In its autumn tint of gold,
From the lightning in the sky
As it passed me flying by,
From the thunder and the storm,
And the cloud that took the form
(When the rest of Heaven was blue)
Of a demon in my view.


(Julio Cortázar - A volta ao dia em 80 mundos)


O único minuto em que ela fugia



Ela andou. Sob o horizonte, um feixe de luz avermelhada se estendia. Não. Ela se iludia. Imaginou. Nenhuma estrela brilhou. Na escuridão, nada era visível. Só, tão só, sozinha. Em meio ao que florescia. E com o tempo, ela percebia que a poesia era apenas sentimento. Na calçada, degrau por degrau, o sangue e a alegria, tudo escorria. Porque de tudo o que ela via, nada mais conhecia. Mudou, se perdeu, transformou. E ela também, neste dia, acordou. Talvez apenas dormia, para além desse mundo de agonia. Sonhou. E a magia do momento aconteceu. Mas o poeta é apenas aquele que se arrepia. Com as palavras, um tormento erigia. Faz brotar tudo aquilo que sentia. É responsável pela euforia e melancolia de sua companhia. E a palavra que era dita, jogada ao ar, se modificou. Mas ainda escondia as vibrações de onde surgia. O sentido. E ela escreveu, não parou, não pensou. Transbordou. E ela corria, corria, corria. Fugia do que não sabia. Labirinto. O despertador tocou. Ela se levantou. Adormeceu.

(A responsável: a insônia da noite anterior)

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ghiraldelli: "Professor, teacher e coach"



"O professor professa. Talvez este seja o grande problema técnico do campo de formação de professores no Brasil. Professar é fazer profissão de, é declarar. Eis aí o drama da língua portuguesa. Nossos mestres professam. Eles têm de professar – são professores. Ora, não se pode negar que a origem do professar tem a ver com os primeiros cristãos: os que professavam a fé em público, os que declaravam publicamente terem determinadas crenças. Essa situação tinha, sim, a ver com ensinar. Quem declarava sua fé em público, ou seja, dava o testemunho da fé, podia então ensinar a outros do que se tratava ser cristão. Declarar é uma forma de contar, de ensinar. Ensinar é declarar.

O interessante é que no mundo de língua inglesa, o professor é apenas o professor universitário, o que lida com adultos. Quem lida com crianças e jovens não é o professor, e sim o teacher."
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(Por Paulo Ghiraldelli Jr.)
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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Brincando de "vão"



No coração um vão

Os amores se vão

Talvez um amor vão

Mas nada nunca em vão


(Insônia de 3.8.2010)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

SENSIBILIDADE

(Kush)


O dicionário ajuda:

Classe gramatical de sensibilidade: Substantivo feminino
Separação das sílabas de sensibilidade: sen-si-bi-li-da-de
Possui 13 letras
Possui as vogais: a e i
Possui as consoantes: b d l n s
Capacidade de sentir.
Propriedade de reação dos organismos aos estímulos externos ou internos: sensibilidade cutânea; sensibilidade moral.
Percepção aguda: sensibilidade visual.
Tendência, disposição a ser dominado pelas impressões, sentimentos, emoções; impressionabilidade, suscetibilidade.

E se acredita sempre pisar em chão firme. Essa mania de dar sentido ao sentir por meio de palavras. De reduzir o sentimento. Palavras. De dar a elas um mundo. Aprisiona-se o mundo por meio da linguagem. Cria-se um mundo vivo a partir da e na linguagem. Enfim, sensibilidade: a capacidade de sentir, sentimento, emoção. Você exercita a sua? Feche os olhos, eles obscurecem a visão.