quarta-feira, 27 de outubro de 2010




Sento-me em uma mesa em meio a calçada da rua Rodriguez Peña para tentar colocar num papel o imenso turbilhão de pensamentos freneticamente calmos que desassossegam meu eu por inteiro. A usual insônia me proibiu de pregar os olhos na vontade do pouco descanso que poderia ter na noite de domingo. Após mudar de posição em minha cama por cinco vezes, em uma tentativa não vitoriosa de dormir, decidi por bem parar de forçar meu corpo que se animava cada vez mais. Convencida, levantei-me e, depois de vestida com a roupa de sair, afofei os travesseiros e encostei-me confortavelmente para continuar a leitura do livro os irmãos Karamázov. Num instante, apenas num piscar de olhos, percebi que o relógio que aparentemente cinco minutos antes marcava meia noite, já soava as badaladas das duas horas da madrugada.

Meus dedos que firmemente seguram a caneta agora correm o papel sem obedecer meus pensamentos. Não temo esquecimento. Os silenciados é que fazem erigir a beleza do texto. Não me atreveria a tornar tudo claro. Jamais poderia tentar fazer com que os desconexos se tornassem conexos, pois aí sim não fariam sentido algum.

Ainda sem pregar os olhos, me dirigi ao aeroporto para embarcar no voo das quatro horas e meia. E dentro do avião, a pequena tentativa de retomar a leitura foi cancelada pela chegada de uma nova amizade de alguém que, como eu, não consegue manter a língua em seu suposto lugar, es decir, dentro da boca. Como diria a hiena do Rei Leão, em boca fechada não entra mosca. Duas horas de linguagem tão próxima e, ao mesmo tempo, tão diferente. Começo a novamente me familiarizar com um antigo novo. O avião pousou por volta das seis e meia, mas somente deixei o aeroporto uma hora depois, pronta para inteirar-me das últimas notícias da cidade, enquanto apreciava a vista. Política, economia, etc. E o táxi chegou rápido demais no destino para que eu pudesse alimentar satisfatoriamente a minha ânsia de querer saber cada vez mais. Despedi-me do motorista e somente larguei a mala no saguão de casa para enfim perceber que meu estômago já estava quase colado com superbonder em minhas costas.

Parti em busca de café-da-manhã, sem seguir caminho certo, mas já tão certa do local aonde minhas pernas iriam me levar. No caminho, esqueço-me de tudo. Esqueço-me de mim. Esqueço-me da fome. Algumas cinco quadras. Incontáveis árvores de folhas verde-jade que, em por alguns instantes, deixam os pequenos raios de sol passar por entre os galhos. Respiro a saudade que me aperta o peito dessa cidade que permanece igualmente intocável no tempo de minhas lembranças e, ainda assim, completamente renovada. Cominho em frente às lojas ainda fechadas da avenida Alvear e, de olhos semicerrados, subo a pequena escada de degraus curtos que me colocará diante da magnífica praça em frente ao local escolhido. Paro na banca da esquina para comprar o diário do dia. O Clarín está escondido, me diz o vendedor. Pago o jornal e me sento em uma mesa fora no café La Biela. E então, não consigo esconder o sorriso que meus lábios esboçam ao olhar para esse lugar que, embora tão culturalmente diferente, tem espaço cativo no meu coração. Em pouco tempo, o jornal sobre a mesa passa a dividir espaço com torradas, iogurte e um saboroso café colombiano. Entre um gole e outro, me divirto com a charge e me perco em pensamentos ao ler algumas manchetes importantes.

Contemplo o dia ensolarado por mais alguns instantes até decidir me levantar e passar no supermercado para levar algumas coisas para minha, por pouco tempo, nova cada. Nem hotel nem apartamento. Uma mistura de hotel e apartamento que converge num chamado apart e que precisa urgentemente de coisas para ficar aconchegantemente um lar. Subo a rua Rodriguez Peña e me sento imobilizada em frente ao café que faz divisa com o mercado e que me convida gentilmente para sentar em uma das mesas da calçada, acompanhada por outra boa xícara de café quente e de uma verde garrafa de vidro d’água dos andes, dessas garrafas que já quase não vemos mais por aí e que cada vez mais cedem lugar às tão sem charme garrafas pet. Perco a noção do tempo.

Algumas páginas de papel branco são manchadas permanentemente de tinta azul. Vários bon dia, com aquele d fechado e quase estridente que responde alegremente a felicidade de um recomeço de dia das pessoas que passam ao meu lado. Alguns que caminham descompromissadamente. Outros em passos largos denunciam um possível atraso para o início da jornada de trabalho. Senhoras empurram carrinhos da feira de frutas e legumes da semana, com seus cabelos cuidadosamente presos.

Encho novamente a taça com água fresca e aproveito para respirar profundamente. Guardo a caneta e o papel para poder explorar algumas ruas em minha volta, algumas já pisadas, outras não, a maioria quase escondida pela sombra da copa das árvores da Recoleta que insistem em crescer mais do que os antigos prédios com portas de madeira. E assim, nesse vai não vem o dia passa e eu somente volto a escrever por volta das duas horas da madrugada de quarta-feira, já dia do censo. [...] a continuar.

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