terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fazendo Gênero: diálogo psicanalítico entre Judith Butler e Patrícia Porchat


Joel Birman (UERJ)

Márcia Ramos Arán (UERJ)

Mara Coelho de Souza Lago (UFSC)

Patrícia Porchat Pereira da Silva Knudsen (UNIP)

Coordenação: Maria Regina Lisboa (UFSC)


Infelizmente, Joel Birman (Gramáticas do erotismo: a feminilidade e as suas formas de subjetivação em psicanálise - que adoro) não pode comparecer. Contudo, a palestra de Patrícia Porchat foi absolutamente encantadora. Abaixo uma entrevista-diálogo entre Patrícia Porchat e Judith Butler.

PP: Você nunca mencionou Joyce McDougall.

JB: Sim, ela é interessante. Gosto do seu trabalho, não o conheço assim tão bem, mas gostei muito do que li. E lamento não ter me envolvido mais com ela, mas talvez ainda o faça. Acho que Françoise Dolto, também, uma parte do seu trabalho em A imagem inconsciente do corpo é ótima para pensar em como o corpo é vivenciado, como sua morfologia é dada ou como é sexuada, como ele se torna ciente ou consciente de si mesmo como um corpo sexual ou como um corpo erógeno. É um trabalho extremamente interessante, esteve em circulação por muito tempo, é parte de uma abordagem psicanalítica mais clássica na França. Há uma tradução para o inglês na revista Differences.

PP: Eu agora gostaria de lhe perguntar um conceito que me parece importante em sua obra. Trata-se do trieb (pulsão), que em inglês aparece como drive. A partir de seu trabalho entendo que até a própria pulsão poderia ser compreendida como socialmente construída. Mas também entendo que, em Undoing Gender, você diz que a pulsão é condição para uma transformação social. Então, quando você fala de pulsão, está se referindo à pulsão freudiana, à pulsão lacaniana, à pulsão deleuziana?

JB: Tudo o que sei é o seguinte: não tenho uma formulação explícita do tipo "Esta é a minha teoria da pulsão". Mas posso dizer algumas coisas a respeito. O ensaio de Freud A pulsão e suas vicissitudes (Trieb und ihre Schicksale) foi muito importante para mim desde que eu tinha 22 anos. E penso que ali ele introduz a ideia da pulsão como conceito-limite, existindo no limiar entre corpo e ideia ("soma" e ideia). E julgo isso extremamente interessante. A pulsão nunca é plenamente capturada pelas ideias, nem tampouco é plenamente redutível a um corpo biológico, mas existe no ponto de sobreposição entre eles, e Freud chega a dizer que a pulsão é parte dessa linguagem figurativa, é parte da poesia dele. Eu me interesso pelo que Deleuze faz com as pulsões em Vênus das peles e em seus primeiros trabalhos sobre Sacher-Masoch. Acho extremamente interessante. A ideia de pulsion, em francês, é provavelmente um pouco diferente, mas ali penso em pulsões como estando a serviço de um perpétuo deslocamento. Mas acho que talvez a pessoa mais importante para mim no tocante a pulsões seja Laplanche e a discussão contida em Vida e morte na Psicanálise. Acho que ele tem uma tese brilhante, que é a de que não há nenhuma teleologia natural para uma pulsão e de que as pessoas que entendem pulsão como um impulso para a reprodução sexual cometem um erro. Ele diz que as pulsões sexuais não têm nenhum telos inerente, nenhum fim ou meta necessários. Assim como você não pode dizer que uma pulsão sirva à função social de reprodução, porque uma pulsão está sempre se desviando do objetivo social para o qual é direcionada. Portanto, não se pode regular efetivamente as pulsões, porque elas sempre vão escapar, ou adotar outro objeto que não o previsto. E para mim isso é ótimo, porque Laplanche realmente defende o argumento de que a sexualidade não está vinculada à reprodução da espécie, e isso é crucial, quero dizer, ela pode ser vinculada, ela pode ser levada a seguir nessa direção, mas isso não é inerente à sexualidade em si. Portanto, tomo isso como um ponto importante.

PP: Considerando a ideia de ser humano, você acha possível que, a partir da psicanálise, seja possível conceber alguma ideia universal de ser humano?

JB: Antes de tudo, não sei se existe algo universalmente verdadeiro sobre todos os humanos. Eu me preocupo com as normas que governam a questão de quem será considerado humano e quem não, mas não acho que exista um humano fora das normas. Penso que algo acontece quando as normas se rompem, ou quando se resiste às normas, ou quando as normas produzem um campo de assim chamados seres humanos fora das normas. E isso é interessante para mim porque há um modo pelo qual a categoria do humano ao mesmo tempo permite o reconhecimento de certos humanos e produz uma impossibilidade para outros. E a esses outros nós chamamos de humanos? De que os chamamos? É uma questão em aberto. Então penso que o humano sempre produz o espectro da mente e é para isso que estou olhando. Não acho que exista uma forma humana singular, não acho que exista uma capacidade humana singular, mas o que eu acho sim, provavelmente na base do meu trabalho há essa suposição, é que os seres humanos, se as condições sociais forem solidárias - e esse é um requisito importante -, se as condições sociais forem solidárias, os seres humanos, como os outros animais, buscam persistir em seu próprio ser. Essa é uma formulação de Spinoza, na Ética. E isso é interessante na medida em que em Spinoza e em Deleuze o indivíduo persiste em seu próprio ser apenas em relação aos outros, e apenas na medida em que as relações com os outros permitem uma grande afetividade ou uma maior expressividade desse desejo de viver. E é por isso que as condições sociais precisam ser propiciadoras. Não é uma capacidade interna, é uma capacidade que vem a ser vivida e exercida nas relações sociais. Então para mim não é uma parte monádica da minha existência, é algo que só se torna possível no contexto de um conjunto de relações. Não posso persistir em meu próprio ser sem ser parte de um mundo social que torna isso possível e em relação com outros, que, em certo sentido, precisam solicitar ou apoiar meu desejo de viver.

PP: Então você tem que ser reconhecido por esse outro.

JB: Sim, o reconhecimento é uma faca de dois gumes, ele pode facilitar o desejo e pode também matar o desejo. É um risco.

PP: Quando você fala de reconhecimento, qual é a diferença que se pode estabelecer em relação à ideia de inteligibilidade que aparece em Problemas de gênero?

JB: Quando falamos sobre o campo da inteligibilidade de gênero, estávamos falando sobre instituições, categorias e linguagens existentes que podem fazer com que o gênero tenha sentido. O reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade. Mas o reconhecimento também pode ser o lugar onde os campos existentes de inteligibilidade são transformados. Assim, se perguntarmos como nos deslocamos de um campo de inteligibilidade a outro, quero dizer que é possível pedir para ser reconhecido de uma maneira que, pelo menos inicialmente, é ininteligível: as pessoas dizem que não posso fazer isso, "não sei o que você está dizendo, não faz sentido, eu recuso". Mas é marcar posição no campo da inteligibilidade, revisá-lo e expandi-lo, de modo que uma nova forma de reconhecimento seja possível. Ou o indivíduo pode dizer: "não quero ser reconhecido por meio de nenhum dos termos que você tem", e nesse ponto aquele campo de inteligibilidade é recusado e uma distância crítica se estabelece. Invocamos campos de inteligibilidade quando reconhecemos outros, mas também podemos retrabalhá-los ou resistir a eles no curso de novas práticas de reconhecimento.


Leia a entrevista completa em:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2010000100009&script=sci_arttext


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