sábado, 21 de agosto de 2010

Pensamento desconexos: a metade da laranja?



O pequeno estalo da cômoda ao lado da cama me despertou de um silêncio que já era ensurdecedor. O final de mais um dia se anunciava pelas luzes dos apartamentos vizinhos que aos poucos começavam a se ascender. O céu, sem nuvens e sem estrelas, transformado em uma paleta de pintura cuja mistura das cores viajava entre o mais brilhante lilás e o azul cobalto. Gradativamente, cada vez mais profundo. É bem provável que o artinha tenha deixado pingar um gota de tinta preta e energicamente deslizado o pincel, fazendo sumir os variados tons que se sobrepunham. A persiana da janela aberta balançava levemente, deixando transparecer centímetros que permitiam a visão da cidade que, vista de cima, parecia feita de brinquedo, tal como se tivesse sido esculpida em massinha de modelar ou montada em lego colorido. Ela ainda dormia. Os olhos semicerrados e a respiração baixa não denunciavam a noite mal dormida. Estava agora e enfim, em paz, simplesmente afastada de um mundo ao qual, por alguns instantes, não mais pertencia. Levantei-me. Um copo d'água. Um xícara de café borbulhante. O relógio da parede transportado diretamente do imaginário de Dalí. O jantar havia sido marcado somente por volta das oito horas, permitindo-me alguns vários minutos de leitura. Afinal, em um sábado, o oito horas torna-se nove horas e ainda mais uma provável meia hora de atraso. Sentei-me em frente à janela para poder observar o que ela permitia vislumbrar do interior. E nesse momento, somente se mostrava o constante questionamento sobre o vazio existencial que perpassa a vida em suas múltiplas formas. Brotou novamente como uma flor que, regada dia a dia em meio ao árido e vasto deserto, rompeu o solo arenoso. A completude e a incompletude. As projeções, os sentimentos, o desejo, os afetos e desafetos. A perda de si, mesmo que por um instante. Crescemos e fomos ensinados que para sermos felizes precisamos encontrar o outro complemento de nossa incompletude. Cara metade. Alma gêmea. Metade da laranja. Tampa da panela. Bota velha? Seria mais ou menos como uma fórmula matemática: 1/2 + 1/2 = 1, ou seja, duas metades formam o todo inteiro, que pensa igual, sente igual. E assim, no amor, esqueceram que ensinar que o nome disso é anulação. Mas afinal (e principalmente), para a geração disney, qual a princesa encantada que não encontra seu príncipe, preferentemente montado em um cavalo branco ou transmodernamente pilotando uma ferrari vermelha? E assim, passa-se grande parte da vida à procura de algo que não se sabe bem o que é. Sentimo-nos apenas metade. Falta. Falta o complemento. E eu que sempre havia me afirmado que esqueceram de nos contar que já somos completos e que um possível, mas nunca provável, outro outro, viria apenas como um outro sensível em uma conexão intersubjetiva de desejo e energia, mudei. Isso não significa que agora entendo-me metade. Não somos completos, mas inteiros. Somos um e não metade. Mas não somos completos e o vazio de um coração comprimido em migalha é comprovação. É esse maldito vazio existencial. Essa falta de sabe-se lá o que. Se não fosse essa incompletude, jamais teríamos pulsão de morte, mas também não haveria pulsão de vida. A negatividade do caótico da incompletude enquanto falta e geradora de pulsão de morte deve ser redimensionada a uma pulsão de vida. Uma busca de criatividade enquanto criação de vida, em contante re-des-cobrimento do ser, tran-forma-(a)ção, de transgressão do instituído, de busca de novos saberes e novas sensações, que permitam a manutenção e perpetuação da vida em constante sensibilidade. O alarme do despertador lembrou-me da necessidade de partir. Deixei a caneta em cima da mesa. A bota velha. Assunto para uma próxima postagem.


(21.08.2010)

3 comentários:

  1. Nossa que show.

    todo mundo tem sua 1/2

    as vezes estão do nosso lado e não percebemos e acabamos ir buscar o mais longe e que pode ser que não seja a verdadeira 1/2

    bjs e até o próximo post

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  2. ...passa-se grande parte da vida à procura de algo que não se sabe bem o que é. Sentimo-nos apenas metade. Falta. Falta o complemento.

    Ai ai...

    Beijinhos :)

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  3. Talvez uma tentativa de racionalidade que briga com a pureza da sensibilidade ;) Bjsss

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