terça-feira, 10 de agosto de 2010

Cortázar e o eu: do sentimento de não estar totalmente (só)


Incrível como podemos nos encontrar por inteiro nos livros. Por inteiro. Inteiramente. Nas descrições, nas interpretações, nas valorações. Nos livros de Cortázar esse sentimento de não estar tão só, como a tia excêntrica, é mágico, absoluto e instantâneo. Do sentimento de não estar totalmente, porque quando se escreve, já foi, já não mais está. Quem vai, não foi. Quem escreve, foi. E eu, nas linhas e entrelinhas, ao menos aos meus olhos. Mas quando foi escrito, a identificação pertence ao ar. As palavras mudam, transformam, se reduzem e aumentam, enfim, acolhem. And all I loved, I loved alone, disse Poe, o preferido (ao lado de Baudelaire) de uma enfant terrible. Isso me faz lembrar do primeiro caderno de anotação de pensamentos, que ganhei aos treze anos, talvez como uma tentativa de estabilizar a gangorra.

O couro negro escondia as folhas que se dividiam entre linhas escritas, pensadas, croquis e desenhos. No verso, uma imagem do Roberto Smith, com o rosto maquiado das cores do arco-íris. E a música Blood flowers, que encantava-me. Na segunda folha, o início do conto Berenice (Histórias Extraordinárias – Poe) - “O infortúnio é múltiplo. A felicidade, sobre a terra, multiforme. Dominando como o arco-íris o amplo horizonte, seus matizes são tão variados como os desse arco e, também, nítidos, embora intimamente unidos entre si […] Ou a lembrança da felicidade passada é a angustia de hoje, ou as agonias que são e tem a sua origem nos êxtases que poderiam ter sido [...]”. Lembranças, momentos. E tudo volta, pertence a mente e aparece sem ser chamado.

Na primeira página, minha preferida, “All I loved, I loved alone”. E a gente escreve. Escreve porque só pode escrever. Porque já foi, não é mais. Não está por inteiro. É metade. Escrever é uma necessidade. Julio, Julio, em quinze minutos acordou um corpo que flutuava, encheu de chamas um coração que estava apagado, apático, sozinho.

Os minutos mais incríveis e mágicos da minha tarde. Sonhos, lembranças e expectativas, tudo misturado, tudo entrou sem pedir licença, apareceu. Por alguns minutos, meus olhos tornaram-se brancos, só via por dentro. Sentia. E Julio contou em meus ouvidos, como num sussurro doce, você não está sozinha:


“Sempre serei criança para muitas coisas, mas dessas crianças que trazem em si o adulto desde o princípio, de maneira que quando monstrinho vira realmente adulto acontece que este por sua vez traz em si a criança, e nel mezzo del camin se dá uma coexistência poucas vezes pacífica de ao menos das aberturas para o mundo.

Isto pode ser entendido metaforicamete, mas de qualquer modo indica um temperamento que não renunciou à visão pueril como preço da visão adulta, e essa justaposição que caracteriza o poeta e talvez o criminoso e também o cronópio e o humorista (questão de dosagens diferentes, de acentuação paroxítona ou proparoxítona, de escolhas: agora eu jogo, agora eu mato) se manifesta no sentimento de não estar totalmente em qualquer das estruturas, das teias que a vida constrói e onde somos ao mesmo tempo aranha e mosca.

Muito do que escrevi se classifica sob o signo da excentricidade, porque nunca admiti uma clara diferença entre viver e escrever; se ao viver consigo disfarçar uma participação parcial nas minhas circunstâncias, não posso porém negá-la no que escrevo porque escrevo precisamente por não estar ou por só estar pela metade. Escrevo por incapacidade, por deslocação; e como escrevo num interstício, estou sempre propondo que outros procurem os seus e por eles olhem o jardim onde as árvores têm frutos que são, naturalmente, pedras preciosas. O monstrinho continua firme. Esta espécie de constante lúdica explica, senão justifica, muito do que escrevi ou vivi. […] Não tenho a menor vontade de argumentar a posteriori que, ao longo dessa dialética mágica, um homem-criança está lutando para arrematar o jogo da sua vida: que sim, que não, que assim está. Pois será que um jogo, olhando bem, não é um processo que parte de uma descolocação para chegar a uma colocação, a uma situação – gol, xeque-mate, cabra-cega? Não será uma cerimônia que se encaminha para a fixação final que a coroa?

O homem do nosso tempo acredita facilmente que sua informação filosófica e histórica o salva do realismo ingênuo. Em conferências universitárias e em conversas de bar ele chega a admitir que a realidade não é o que parece e está sempre disposto a reconhecer que seus sentidos o enganam e que sua inteligência lhe fabrica uma visão tolerável porém incompleta do mundo. Cada vez que pensa metafisicamente se sente “mais triste e mais sábio”, porém sua admissão é momentânea e excepcional, ao passo que o contínuo da vida o instala por inteiro na aparência, concretizando-a em torno dele e vestindo-a de definições, funções e valores. Esse homem é um ingênuo realista mais do que um realista ingênuo. Basta observar seu comportamento diante do excepcional, do insólito: u o reduz a fenômeno estético ou poético (“era uma coisa realmente surrealista, juro”) ou desiste logo de indagar na entrevisão proporcionada por um sonho, um ato falho, uma associação verbal ou causal fora do comum, uma coincidência perturbadora, qualquer das fraturas instantâneas do contínuo. Se perguntarem, dirá que não acredita por inteiro na realidade cotidiana e que só a aceita pragmaticamente. Mas acredita sim, e como. Só acredita nela. Seu sentido da vida se parece com o mecanismo do seu olhar. Às vezes, ele tem uma efêmera consciência de que a cada tantos segundos as pálpebras interrompem a visão que sua consciência decidiu entender como permanente e contínua; mas quase de imediato as piscadas voltam a ser inconscientes, o livro ou a maça se fixam em sua obstinada aparência. Há uma espécie de acordo de cavalheiros entre a circunstância e os circunstanciados: você não me tira dos meus hábitos e eu não fico te cavucando com um palito. Mas agora acontece que o homem-criança não é um cavalheiro e sim um cronópio que não entende bem o sistema de linhas de fuga graças às quais se cria uma perspectiva satisfatória dessa circunstância, ou então, como acontece nas collages mal resolvidas, sente-se numa escala diferente em relação à escala da circunstância, uma formiga que não cabe num palácio ou um número quatro no qual só cabem três ou cinco unidades.

Comigo isso acontece palpavelmente, às vezes sou maior do que o cavalo que monto e noutros dias caio num dos meus sapatos e leva uma tremenda pancada, sem falar no trabalho para sair, nas escadas fabricadas nó a nó com os cadarços e a terrível descoberta, já na beirada, de que além guardava o sapato num armário e que eu estava pior que Edmond Dantés no castelo de if porque nos armários da minha cada nem seque há um abade à mão.

E gosto disso, e sou terrivelmente feliz no meu inferno, e escrevo. Vivo e escrevo ameaçado por essa lateralidade, essa paralaxe verdadeira, esse estar sempre um pouco mais à esquerda ou mais ao fundo do lugar onde deveria estar para que tudo encaixasse satisfatoriamente em mais um dia de vida sem conflitos. Desde pequeno assumi com o dentes apertados essa condição que me afastava dos meus amigos e ao mesmo tempo os atraía para o estranho, o diferente, para quele que botava o dedo no ventilador. Eu não estava destituído de felicidade; a única condição era coincidir às vezes (o colega, o tio excêntrico, a velha maluca) com outro que também não coubesse direito nos próprios documentos, e evidentemente não era fácil; mas logo descobri os gatos, nos quais podia imaginar minha própria condição, e os livros, onde a encontrava por inteiro. Naquele tempo eu poderia dizer para mim mesmo os versos talvez apócrifos de Poe:


From childhood's hour I have not been
As others were; I have not seen
As others saw; I could not bring
My passions from a common spring.
From the same source I have not taken
My sorrow; I could not awaken
My heart to joy at the same tone;
And all I loved, I loved alone.
Then- in my childhood, in the dawn
Of a most stormy life- was drawn
From every depth of good and ill
The mystery which binds me still:
From the torrent, or the fountain,
From the red cliff of the mountain,
From the sun that round me rolled
In its autumn tint of gold,
From the lightning in the sky
As it passed me flying by,
From the thunder and the storm,
And the cloud that took the form
(When the rest of Heaven was blue)
Of a demon in my view.


(Julio Cortázar - A volta ao dia em 80 mundos)


6 comentários:

  1. Leilane, muito bacana o que escreveste.
    Me chamou a atenção esses nomes Cortazar e Poe. Não conhecia a frase soco no estômago "All I loved, I loved alone". Tem um conto de Hist. Extraordinárias, se não me engano se chama o Retrato Ovalado, que é pra mim um dos melhores, que fala da sublime arrogância de pretendermos apreender sentimentos e pessoas em um mundo que é só nosso, um mundo em que a solidão é uma condição e que o diálogo uma única possibilidade de anestesiá-la.
    Parabéns.
    Beijo Paulo.

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  2. Paulo, peguei meu H.E. Curiosa, olhei do início ao fim. Na minha versão não tem esse conto!! To procurando, assim que ler, escrevo. Mas a tua leitura do conto, compartilho do mesmo pensamento. Amamos sozinhos, sentimos sozinhos. E isso mesmo diante da infinita rede de conexão e energia que envolve a todos. Mas ninguém ve o mundo com as mesmas cores, não é mesmo? A solidão sempre será solidão. Não pode ser compartilhada, mas pode ser anestesiada, como você mesmo disse. Um soco muito grande, mas um desespero que beira tanto ao abismo que faz surgir uma vontade imensa de potencia de vida. Acho Poe um gênio. Você gosta de Baudelaire também??

    Obrigada! Bj, Leilane

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  3. Conheci o teu blog agora. Adorei. Que delícia de espaço.

    Bj

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  4. Obrigada Michele! Seja bem vinda sempre :) Bj

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  5. Filha, adorei ler o que vc escreveu...lembrei muito da tua adolescência, do teu jeito tão próprio de ver as coisas desde a mais tenra idade...
    Lembro-me que comentávamos que cada um de nós percebia a vida através das lentes que usava...e elas eram próprias...
    Amo muito você...
    Beijos
    Mama

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  6. Je t'aime aussi ;)

    40 graus aí? Do negativo ao infernal.. risos!

    Bj

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